Introdução
Muito embora o instituto da ação monitória tenha ingressado em nosso ordenamento jurídico há quase 15 (quinze) anos, por força da lei nº 9.079/95, ainda hoje subsistem dúvidas quanto ao alcance da expressão “prova escrita sem eficácia de título executivo”, em especial se esta abrangeria os títulos executivos (de crédito) prescritos.
Ademais, discute a doutrina que, em se admitindo a possibilidade de ajuizamento da demanda monitória em sede de título executivo prescrito, qual seria o prazo de prescrição da pretensão a ser observado.
O presente estudo procurará demonstrar que, não obstante se deva admitir a ação monitória lastreada em documento executivo prescrito, não se pode conceber que tenha sido criado um instrumento capaz de burlar todas as regras de prescrição estampadas no Código Civil.
A ação monitória
A expressão “monitória” se relaciona à direção, ordem, determinação.
A ação monitória visa obrigar o réu, a pagar determinada quantia em dinheiro ou entregar determinada coisa fungível ou bem móvel, mediante uma sentença que sirva como título executivo judicial, fundamentando-se em um documento que não tem força executiva.
Maria Helena Diniz assim a define (2005, p. 342):
Ação pela qual o credor de quantia certa ou de coisa determinada, cujo crédito esteja comprovado por documento hábil, requerendo a prolação de provimento judicial consubstanciado num mandado de pagamento ou de entrega de coisa, tem por fim a obtenção da satisfação de seu direito.
De acordo com alguns doutrinadores, assemelhar-se-ia à antiga ação cominatória. Nas palavras de Orlando de Assis Corrêa (1995, p. 13):
A ação monitória, assemelha-se (...) à antiga ação cominatória, embora sua finalidade seja um pouco diferente e as exigências para seu recebimento e desenvolvimento não sejam idênticas; naquela, o réu estaria obrigado, pela lei ou pelo contrato, a fazer determinada coisa ou a se abster de determinado ato; aqui, o réu se obrigou por um documento que não tem força executiva, seja a pagar determinada quantia em dinheiro, seja a entregar determinada coisa fungível ou determinado bem móvel. Tanto numa como noutra, porém, a sentença proferida servia ou serve como título executivo judicial.
Embora se inicie como uma ação de conhecimento, a monitória apresenta uma segunda fase, como processo de execução, quando julgado procedente o pedido e condenado o réu ao cumprimento da respectiva obrigação.
Márcio Archanjo Ferreira Duarte (2008) entende que a monitória se compreende como um novo procedimento executório especial:
O novel instituto da Ação Monitória trazido pela Lei Federal nº. 9.079/95 à processualística brasileira, constante dos Arts. 1.102-A / 1.102-C, compreende um procedimento executório especial, já que cuida em constituir uma prova escrita, desprovida de força executória, em um título executivo extrajudicial, dando-lhe exigibilidade jurídica, como a própria letra da lei aduz, no Art. 1.102-A, do C.P.C. De plano, concebe-se da lei que o Legislador quis oferecer um novo instituto que garantisse a quem tenha o direito, de alcançar um bem por simples prova escrita, assim comprometido tal bem, por exemplo, por uma declaração escrita ou por um pré-contrato particular, sem os parâmetros solenes exigidos por lei que lhe desse força executiva, atrevendo-se até a entender ser objeto de uma ação monitória, uma simples “folha de papel de pão” firmada pelo devedor, em razão mesmo da dinâmica das relações sociais hodiernamente, procurando propiciar dentre outras benesses, um certa desburocratização àquele menos letrado e sem condições financeiras de arcar com custas de atos que lhe garantissem o mesmo já garantido em vias mais simples ou mais subjetivas. (...)
Natureza jurídica da ação monitória
Embora, num primeiro momento, a natureza jurídica da ação monitória pareça ser condenatória, dada a redação do artigo 1.102-A do Código de Processo Civil, ao dispor que compete a quem pretenda receber quantia em dinheiro, entrega de coisa fungível ou de bem móvel; num segundo plano, o próprio diploma processual, no artigo 1.102-C, aproxima-a da natureza constitutiva, ao asseverar que no caso de ausência de resposta do réu ou rejeição de embargos se “constituirá” de pleno direito o título.
Mas deve se atentar que, se o legislador pátrio tencionasse dar à sentença caráter constitutivo, teria a incluindo no rol do artigo 584 do Código de Processo Civil, o que não o fez.
Nesta esteira, preceitua Orlando de Assis Corrêa (1995, p. 14):
Ora, se o legislador tivesse querido dar à sentença constitutiva advinda da decisão favorável ao autor, nos casos acima, teria que ter incluído, no elenco do art. 584, a sentença de mérito favorável ao autor, no caso da ação monitória; ou esqueceu de tal fato, ou não o quis, deliberadamente, fazer, optando pela sentença condenatória, nesta ação. Sendo assim, a sentença favorável ao autor, nos casos acima, será uma sentença condenatória, determinando o pagamento da quantia em dinheiro pleiteada ou a entrega da coisa fungível ou do bem móvel que tenham sido objetos da ação. A expressão “constituir-se-á de pleno direito título executivo judicial”, usada no art. 1.102C, deve ser entendida como se aplicando à própria sentença condenatória, que se baseará no documento apresentado pelo autor, revestido das características do título extrajudicial, pela própria inércia do réu, ou pela impossibilidade do mesmo em desconstituí-lo.
Logo, a natureza jurídica da monitória é de ação condenatória.
A ação monitória e a prova escrita
Nos termos do artigo 1.102-A, CPC, a ação monitória compete a que pretender, com base em prova escrita, sem eficácia de título executivo, pagamento de soma em dinheiro, entrega de coisa fungível ou de determinado bem.
Exige-se, portanto, uma prova escrita da obrigação a ser cumprida (não sendo suficiente as declarações de testemunhas).
Como prova escrita, deve ser entendido qualquer documento firmado pelo devedor que contenha a declaração a ser cumprida, mesmo que não tenha sido exatamente esta a finalidade de sua constituição. Podem ser considerados como prova escrita vales, bilhetes, notas descritivas de produtos e serviços e, entre outros, até mesmo um papel de pão.
Noutras palavras, seria todo produto de ajuste de vontades, revelador da existência de uma obrigação.
Títulos executivos prescritos podem ser caracterizados como prova escrita?
A questão mais polêmica no que pertine à ação monitória reside justamente na possibilidade de títulos executivos prescritos serem considerados como prova escrita e, portanto, aptos a lastrear a respectiva demanda.
A presente pesquisa focar-se-á nos títulos de crédito (cheques, notas promissórias, duplicatas e letras de câmbio), tidos como títulos executivos extrajudiciais por força do artigo 585, inciso I, do Código de Processo Civil.
De acordo com Márcio Archanjo Ferreira Duarte (2008), a prova escrita mencionada no artigo 1.102-A, do Código de Processo Civil, referir-se-ia a todo documento que demonstre um ajuste de vontade e que não esteja elencado nos artigos 475-N ou 585 do Código Adjetivo. In verbis:
Destarte, a mencionada prova escrita sem eficácia de título executivo, nada mais seria que o produto de todo ajuste ou acordo de vontades, que revele a existência de uma obrigação, ou seja, que comprometa alguém em alguma obrigação com outrem, como qualquer contrato pode se perfazer, que não esteja elencada, tal prova escrita, no Art. 475-N ou no Art. 585, ambos do C.P.C., aduzindo o que se consideram títulos executivos judiciais e extrajudiciais, respectivamente. Ou seja, será prova escrita sem eficácia de título executivo todo documento que não esteja arrolado nos Arts. 475-N e 585, do C.P.C. Ademais, a própria lei corrobora com esse entendimento, como pode ser constatado do Inc. VII, do Art. 585.
Para este autor, filiado à corrente de que títulos de crédito prescritos não podem lastrear uma ação monitória, admitir que um título executivo retomasse a sua executividade após a prescrição, caracterizar-se-ia como um contra-senso, gerando insegurança jurídica:
O Art. 1102a quer tutelar toda prova escrita que não seja constante dos Arts. 475-N e 585, do C.P.C., ou seja, que não tenha força executiva (complete-se: e que nunca teve força executiva). Dessa forma, admitir que um documento que esteja elencado em um dos Artigos acima, possa ser objeto de ação monitória, seria permitir a contrariedade a dispositivo de lei federal, pois as notas promissórias retro mencionadas se comportam no Art. 585, Inc. I, C.P.C. Assim, a ação competente para executar uma nota promissória, seria a competente ação cambial. Então, quando os referidos títulos perecem de sua exeqüibilidade, em razão do decurso prescricional específico como determina a lei, não poderão mais – sob pena de ferir frontalmente o princípio da Segurança Jurídica – readquirir tal força executiva. Caso contrário, além de desvanecer o aludido princípio, igualmente estaria tombando dispositivos legais referentes à prescrição de cada título executivo dos Arts. 475-N e 585, do C.P.C., especificamente tratada em lei, bem como estaria perpetuando determinados direitos, que notoriamente sabe-se que a prescrição veio limitar, posto que nenhum direito é infinito.
A seu turno, Orlando de Assis Corrêa (1995, p. 31) considera que “um cheque sem força executiva, por já haver transcorrido o prazo de lei para o processo de execução, uma nota promissória ou uma letra de câmbio nas mesmas condições” podem lastrear o procedimento monitório, uma vez que demonstrariam a certeza e a liquidez da obrigação, preenchendo os requisitos da “prova escrita”.
O Superior Tribunal de Justiça também já entendeu e, inclusive sumulou a posição de que “é admissível a ação monitória fundada em cheque prescrito” (Súmula 299).
A nosso ver, a lei facultaria que os títulos de crédito prescritos fossem considerados como prova escrita da obrigação, haja vista que não perfez qualquer distinção neste sentido e que tal não confrontaria com os artigos 475-N e 585 do Código de Processo Civil. Afinal, se um título de crédito prescrito pode (e sempre pode!) lastrear uma ação de cobrança, não subsistiria óbice no tocante à ação monitória.
Todavia, concordando com Márcio Archanjo Ferreira Duarte (2008), esta possibilidade não pode colocar em risco a segurança jurídica e muito menos tornar um título imprescritível, razão pela qual, para o ajuizamento da ação monitória, imperiosa a observância das regras de prescrição da pretensão, estampadas no código substancial.
A ação monitória e a prescrição da pretensão estampada no título de crédito
Consoante Clovis Beviláqua (1972, p. 310), “a prescrição é uma regra de ordem, de harmonia e de paz, imposta pela necessidade de certeza nas relações jurídicas”.
Trata-se da perda do direito de ação, pautada no princípio de que o direito não pode tutelar negligências e socorrer aos que dormem.
As regras de prescrição se encontram no Código Civil, a partir de seu artigo 206.
Tomando-se por base o posicionamento de que seria possível o ajuizamento da ação monitória com fundamento em título de crédito prescrito, desde que não tivesse se operado a prescrição da pretensão, foram suscitadas quatro correntes doutrinárias:
Por Marcelo Colombelli Mezzomo (2008):
Diante do atual Código Civil, quatro opções se colocam. A primeira consiste em considerar-se a pretensão exercida como pretensão pura e simples de direito pessoal, pelo que se lhe aplica a prescrição longi temporis, hoje de 10 anos. A segunda é considerar-se a pretensão como sendo de vedação ao enriquecimento ou locupletamento indevido, com prazo prescricional de três anos, por força do artigo 206, parágrafo 3º, inciso IV, do CC. A terceira é considerar incidente o artigo 206, parágrafo 3º, inciso VIII, do CC, com prescrição também em três anos. A quarta é considerar incidente o artigo 206, parágrafo V, inciso I, do CC, com prazo de cinco anos.
Para se resolver o imbróglio, é preciso se verificar que uma vez prescrita a pretensão executiva, o título de crédito deixa de ser fonte de obrigação, subsistindo apenas uma pretensão baseada no artigo 884 do Código Civil, no contexto de vedação do enriquecimento ilícito.
A prescrição de um título de crédito, por derradeiro, deverá ser contada em duas etapas: a primeira, referente à prescrição da pretensão cambiária, em que a lei especial estabelece os prazos (06 meses da data de apresentação para o cheque da mesma praça, 03 anos para a nota promissória, etc) e, não o fazendo, aplicável o triênio previsto no parágrafo 3º do artigo 206 do Código Civil; a segunda, relativa à pretensão de ressarcimento pelo locupletamento indevido.
Nesta esteira, é certo que o único dispositivo aplicável é o artigo 206, parágrafo 3º, inciso IV do Código Civil. Assim, da data da prescrição executiva do título de crédito, o credor teria o prazo de 03 (três) anos para pleitear o ressarcimento (uma obrigação de caráter pessoal, no sentido de efetivar o pacta sunt servanda), respeitando-se a segurança jurídica.
Ora, o prazo prescricional de dez anos não pode ser aplicável quando houver regra específica; o artigo 206, parágrafo 3º, inciso VIII se refere, nitidamente à prescrição executiva (na falta de lei especial regulamentadora) e o parágrafo 5º, inciso I não pode ser cogitado em razão de um título de crédito prescrito, que embasa a ação monitória, não mais retratar uma obrigação líquida.
Conclusões
Data vênia às opiniões divergentes, título executivo (em especial, título de crédito) prescrito pode lastrear ação monitória, uma vez que se caracterizam como prova escrita da dívida (demonstram certeza e liquidez). Este tem sido o entendimento da maioria da doutrina e da jurisprudência, sacramentado pelo Tribunal guardião da lei federal. Todavia, não pode se considerar que o Código de Processo Civil, ao instituir este procedimento executivo, tenha visado burlar as regras de prescrição.
Um título não poderá ser cobrado a qualquer tempo, sob pena de ferimento ao postulado basilar da segurança jurídica.
Neste contexto, tal qual se expusera, o prazo para a prescrição da pretensão punitiva (e consequentemente, possibilidade de ajuizamento da demanda monitória) seria de três anos, a teor do artigo 206, parágrafo 3º, inciso IV do Código Civil.
Bibliografia
BEVILÁQUA, Clóvis. Tratado Geral do Direito Civil’. São Paulo. 1972.
CORRÊA, Orlando de Assis. Ação Monitória. Rio de Janeiro: Aide, 1995.
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DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Vol.3. São Paulo: Saraiva, 2005.
MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Prescrição da ação monitória dos títulos de crédito. Disponível em http://materiasjuridicas.wordpress.com/2008/12/09/prescricao-da-acao-monitoria-dos-titulos-de-credito/ Acesso em 28.out.2009.
TUCCI, José Rogério Cruz e. A Ação Monitória. Editora Revista dos Tribunais, 1997.
Advogada. Pós Graduação "Lato Sensu" em Direito Civil e Processo Civil. Bacharel em direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo. Extensão Profissional em Infância e Juventude. Autora do livro "A boa-fé objetiva e a lealdade no processo civil brasileiro" pela Editora Núria Fabris e Co-autora do livro "Dano moral - temas atuais" pela Editora Plenum. Autora de vários artigos jurídicos publicados em sites jurídicos.E-mail: [email protected], [email protected], [email protected]<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRETEL, Mariana e. Ação monitória e título de crédito prescrito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 nov 2009, 08:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /18689/acao-monitoria-e-titulo-de-credito-prescrito. Acesso em: 29 dez 2024.
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